Saudade foi definida por Anthony Bourdain como uma espécie de Melancolia, uma tentativa de voltar a algo ou alguém que perdemos ou, talvez, o regresso a um momento feliz. Acho que só um Português consegue tentar definir e sentir a Saudade.
Todos os portugueses possuem uma ligação à terra muito intensa e à Saudade. É muito comum que nos cafés das cidades, em conversas corriqueiras, se ouça sempre a referência à aldeia. Em grande parte graças a todas as migrações internas que foram acontecendo em Portugal, essencialmente a partir do século XIX com a industrialização, quando famílias inteiras se mudaram do campo para as cidades em busca de um sonho encostado ao americano mas em versão Lusa.
O “vou à aldeia”, diz-se sem sentido pejorativo com uma nuance de Saudade, e mais do que um regresso ao Passado é um desejo de Futuro. Espera-se o fim da vida de trabalho para se poder, idealmente, voltar à terra e devolver o que lhe foi tirado, restituir a árvore ou os frutos às raízes. Amargar os sonhos que não foram concretizados e fazer a reconciliação com o campo, agricultando-o.
A saudade, constitui assim uma espécie de Happy Place ao qual retornamos para nos reconectar com o nosso ADN, que nos está intrinsecamente a lembrar o que é importante e do que somos feitos. Usar a Saudade para voltarmos aos nossos familiares perdidos, de uma forma ou outra, é voltarmos aos bons momentos e às recordações que os faziam especiais. É uma dor boa, de um tempo que nunca voltará mas que deixou as marcas que constituem as influências positivas no nosso carácter.
Há saudades de comida ou, para sermos justos, das emoções que lhes estão associadas e não exactamente dos sabores. A Ceia de Natal é, sejamos duros, aborrecida: Batatas cozidas, Bacalhau cozido e couves cozidas estão longe de ser um arco-íris de cor e sabor mas, quando saboreada noutras alturas do ano, possui uma carga emocional que nos deixa felizes. A memória está intimamente ligada às pessoas que nos acompanharam naquela refeição épica e não à comida em si. Costumamos ter saudades da comida das nossas famílias, porque de alguma forma estamos a transmitir a falta que nos faz a pessoa que a cozinhava ou as pessoas que se juntavam à mesa para dela usufruir.
Pode-se fazer uma aproximação da Saudade a uma espécie de memória involuntária, como definida por Proust, em que há momentos em que de repente nos vem tudo à cabeça, um turbilhão de situações e sentimentos que estão directamente relacionados com um passado que nunca voltará, uma situação que não se repete, e que nos remete para um momento ideal no tempo e espaço, que não é um exercício de memória, porque ela, muitas das vezes é fabricada, mas uma conjugação involuntária de factores que nos transmitem boas sensações. A Saudade, é uma caixa negra dos bons momentos que nos influenciaram e nos transformaram naquilo que somos hoje. Voltar lá, não é um exercício freudiano de auto-análise mas um transporte para o Happy Place que nos reconforta, como em Proust, e nos tira momentaneamente da miséria ou não.
Portugal possui esta palavra única por uma série de circunstâncias históricas e é um sentimento comum a todo o território, vingando apesar das diferenças Norte/Sul, Litoral/Interior. A Saudade nacional, muito presente na escrita, remete para os momentos áureos da História de Portugal, e embora se defina muitas vezes o seu nascimento com o desaparecimento de D. Sebastião, há raízes bem mais antigas, como por exemplo nas Cantigas de Amor do Século XI português. Sempre relacionada com a falta da mulher amada, tem sempre uma conotação triste, embora remeta para momentos felizes com a amada. É assim que se utiliza a saudade, de uma forma triste e melancólica por algo que foi bom mas já passou.
Todas as glórias associadas a Portugal, como a definição das fronteiras em 1267, a não anexação por Espanha em 1383-85, os Descobrimentos Portugueses, a Restauração da Independência em 1640 marcaram a memória colectiva de uma forma indelével. A Máquina de Propaganda do Estado Novo usou e abusou de todos estes momentos para exacerbar o espírito nacionalista. Esta é a Saudade portuguesa, de um tempo glorioso de feitos notáveis de um país tão minúsculo em população e recursos que deu novos mundos ao mundo. Que chegou a ser uma das super-potências do Mundo. Este retorno ao Happy Place, devia ser o exemplo que todos deveríamos usar na delineação do nosso carácter mas que não se consegue observar em todo o país.
No Porto, tiramos mais proveito deste regresso, porque, em momentos de crise, o Porto é o primeiro a colher frutos desse uso inteligente da Saudade. Se calhar temos uma memória involuntária com mais vontade do que o resto do país ou, então porque o nosso Happy Place é mais recente. A implantação do liberalismo, todas as revoluções culturais e políticas dos séculos XIX e XX, a resistência histórica a tudo o que advém do governo central, o excesso e a sede de cultura, fazem-nos interpretar a nossa saudade como um possível Futuro.
Quando Anthony Bourdain esteve a gravar o Episódio 10 da Série 9 do seu Programa Parts Unknown, tive a oportunidade de ter uma discussão, bem mais longa dauela que é apresentada no episódio, sobre Saudade e o seu significado. Partilhámos a Lampreia à Bordalesa com o nosso amigo Pedro Caxote, e enquanto o ciclóstomo nos ia adoçando o palato, Bourdain tentou levar a Saudade para o significado que lhe é permitido aceder como Americano, um sentimento de nostalgia, de tristeza. Tive que lhe dizer que estava errado e, embora ele deva ter pensado que eu era maluco para o desafiar em plena CNN, que Saudade era diferente. O Senhor Pedro veio em meu auxílio, como bom lobo do mar, e partilhou a sua visão da Guerra Colonial Portuguesa, que levou uma geração inteira para o Ultramar, lutar uma guerra sem sentido. Com lágrimas nos olhos, Pedro falou da camaradagem, dos cheiros, das paisagens, de sentimentos que o marcaram positivamente, muito embora estivesse colocado num dos piores sítios, a Guiné. Naquele momento, eu e o Tony fomos transportados para aquele cenário de Guerra, que Pedro, uma alma gentil e pura, recordou com carinho, com Saudade.